‘Sangue não tem orientação sexual’: a luta da comunidade LGBT+ pelo direito de doar sangue no Brasil 61y55

A liberação da doação de sangue por homens gays e bissexuais marca um capítulo importante na luta por igualdade e contra a discriminação 3v7271

13/06/2025 17:17

Por décadas, homens gays e bissexuais foram impedidos de doar sangue no Brasil, mesmo quando estavam saudáveis e dispostos a salvar vidas. Sob a justificativa de segurança transfusional, prevaleceu uma norma que, na prática, excluía com base na orientação sexual — e não no comportamento de risco real.

A Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) manteve por anos uma regra que impunha 12 meses de abstinência sexual a homens que tiveram relações com outros homens. Embora embasada tecnicamente, a medida refletia mais os estigmas sociais do que evidências científicas. Para muitos, tratava-se de uma barreira simbólica, que negava o pleno exercício da cidadania.

“Era claramente uma medida discriminatória”, afirma Toni Reis, presidente da Aliança Nacional LGBTI+, em entrevista exclusiva à Catraca Livre, para a série de conteúdos especiais do Junho Vermelho, campanha em conscientização de doação de sangue.

E, como lembra Toni, a luta contra essa regra começou muito antes da decisão do STF. “Estamos lutando contra essa restrição desde 1992, quando enviamos os primeiros ofícios à Anvisa solicitando a retirada dessa norma.”

‘Sangue não tem orientação sexual’: a luta da comunidade LGBT+ pelo direito de doar sangue no Brasil
‘Sangue não tem orientação sexual’: a luta da comunidade LGBT+ pelo direito de doar sangue no Brasil - iSTock/sibway

O peso do estigma: HIV/AIDS e homossexualidade 1z5c3q

Para entender a raiz dessa proibição, é necessário voltar aos anos 1980, quando o HIV/AIDS começou a ser compreendido. Nos primórdios da crise, os chamados “5Hs” — homossexuais, hemofílicos, haitianos, heroinômanos e prostitutas (hookers) — foram rotulados como grupos de risco.

Essa categorização inicial moldou políticas públicas excludentes. Homens gays aram a ser vistos não como cidadãos, mas como vetores da epidemia. Embora a OMS só tenha retirado a homossexualidade da lista de doenças em 1990, essa visão patologizante seguiu presente em documentos oficiais até meados de 2018, com a desclassificação da transexualidade como transtorno.

Toni Reis relembra um caso emblemático. “Um menino de 17 anos, que nunca tinha tido relações sexuais, tentou doar sangue para a avó. Declarou ser gay e foi impedido. A regra era draconiana. Ser gay era automaticamente associado ao risco.”

O estopim: pandemia e crise nos estoques 5cd6r

Foi preciso que uma pandemia global expusesse ainda mais a necessidade de sangue para que o debate avançasse. Com a Covid-19, os estoques dos hemocentros caíram drasticamente, reacendendo a discussão sobre quem podia doar.

Em meio à crise sanitária, a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 5543), ajuizada pelo PSB (Partido Socialista Brasileiro), ganhou força. O julgamento, ocorrido em maio de 2020, teve sete votos favoráveis e quatro contrários. O relator, ministro Edson Fachin, afirmou que “não se pode negar, a quem deseja ser como é, o direito de também ser solidário.”

A decisão foi considerada histórica. “Sentimo-nos contemplados”, afirma Toni. “Lutamos muito para que ela acontecesse. Conversamos com todos os ministros do Supremo, buscamos audiências com o Ministério da Saúde. Foi uma vitória lindíssima.”

Homens gays e bissexuais conquistam direito de doar sangue, mas enfrentam desafios e estigmas na prática.
Homens gays e bissexuais conquistam direito de doar sangue, mas enfrentam desafios e estigmas na prática. - iStock/gorodenkoff

As vozes da mudança: ativismo, redes e articulação 1q6w3f

A virada de página não ocorreu apenas nos tribunais. Foi fruto de um movimento conjunto entre organizações sociais, ativistas e ciberativistas. Grupos como o Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), o Grupo Dignidade e a Defensoria Pública da União atuaram como amicus curiae no processo.

Campanhas como #EqualBloodBR e #EuQueroDoarSTF dominaram as redes sociais, questionando a lógica discriminatória da regra. “A internet foi essencial para mobilizar opinião pública e sensibilizar os ministros”, pontua Toni.

Além disso, a própria Aliança Nacional LGBTI+ se envolveu ativamente na construção de uma nova cultura de triagem. “Defendemos um questionário baseado em práticas, não em identidades. Perguntar sobre uso de preservativo, janela sorológica, número de parceiros — tudo isso é necessário. O que não pode acontecer é alguém ser barrado só por ser gay.”

Do direito conquistado à prática cotidiana 1p6f10

A revogação da norma da Anvisa, oficializada em junho de 2020 após a decisão do STF, representou um marco importante para a doação de sangue no Brasil. A partir de então, a triagem ou a se basear em condutas de risco individuais, e não mais na orientação sexual dos doadores. Essa mudança técnica é fundamental, mas não elimina um problema maior: o estigma social ainda presente.

Como lembra Toni Reis, presidente da Aliança Nacional LGBTI+, “os bancos de sangue são um reflexo da sociedade. E a sociedade ainda carrega os estigmas de que ser gay é pecado, crime ou doença.” Esses preconceitos históricos — que vão desde a perseguição na Idade Média, ando pela criminalização no Código Penal, até a patologização pela Organização Mundial da Saúde — ainda influenciam a forma como pessoas LGBTQIA+ são vistas e tratadas em diversas instituições, inclusive nos hemocentros.

Por isso, mesmo com a mudança nas regras, o ambiente da doação de sangue ainda exige uma luta pedagógica e cultural para superar preconceitos. Ainda que a legislação não restrinja mais a doação para homens gays, a desconfiança e o estigma social podem gerar constrangimentos e inseguranças, dificultando o o pleno a esse direito.

Nesse cenário, a experiência de Calebe Souza, 28 anos, jornalista de Mogi das Cruzes (SP), traz um contraponto positivo. Calebe iniciou suas doações em 2019, antes da mudança nas regras, e conta que nunca enfrentou situações constrangedoras ou discriminatórias durante o processo. “Sempre fui tratado com respeito”, afirma.

Ele também destaca que, após as alterações, o procedimento de triagem continuou técnico e transparente. “Perguntaram com quantas parceiras eu tive relação, e como não tive nenhuma naquele período, respondi zero. Depois, as perguntas aram a ser mais focadas na janela imunológica, sem invasões pessoais.” A experiência de Calebe mostra que, apesar dos desafios, é possível garantir um atendimento digno e inclusivo.

Ativismo e decisões judiciais garantem direito de doação, mas a batalha contra o preconceito continua.
Ativismo e decisões judiciais garantem direito de doação, mas a batalha contra o preconceito continua. - iStock/Mixmike

Representatividade e o peso simbólico 6l5y44

Para Calebe, poder doar sangue é mais do que um ato humanitário. É um gesto de resistência e inclusão. “É um o fundamental de respeito e igualdade. Não faz sentido manter uma restrição por puro preconceito quando os bancos de sangue estão em baixa.”

Ele reconhece o peso político da conquista. “Esse avanço quebrou barreiras. O ajuste técnico veio porque houve uma mudança cultural e política. E demorou demais.”

A mensagem que deixa a outros LGBTQIA+ é clara. “Não tenham medo. Doar sangue é um gesto de humanidade. Discriminação é crime e pode — e deve — ser denunciada.”

Avanços, mas com vigilância 10345x

Segundo Toni Reis, a Aliança Nacional LGBTI+ não recebe denúncias relacionadas à doação de sangue há cerca de um ano e meio, o que demonstra um sinal de progresso. Mas ele ressalta que ainda há desafios na formação das equipes, no acolhimento nos hemocentros e na superação do preconceito institucional.

“Ainda ouvimos reclamações sobre perguntas desconfortáveis”, diz. “Mas essas perguntas devem existir, desde que sejam técnicas e para todos — gays, héteros, bissexuais, assexuais.”

Internacionalmente, o Brasil está à frente de países como os Estados Unidos, que ainda impõem restrições a homens gays que praticaram sexo anal nos últimos três meses. A FDA (istração de Alimentos e Medicamentos) adotou recentemente critérios mais técnicos, mas ainda se baseia em estigmas específicos.

Campanhas e memória: o sangue como símbolo ty6a

Para reforçar a conscientização, a Aliança promoveu a campanha “Igualdade na Veia”, feita em parceria com a agência OpusMúltipla, de Curitiba. Premiada internacionalmente, a iniciativa teve grande impacto e marcou a conquista como um marco de cidadania.

“Doar sangue é um ato de amor”, resume Toni. “O sangue é o combustível da vida. A orientação sexual ou identidade de gênero não podem ser impedimentos.”

Solidariedade sem discriminação: a trajetória da comunidade LGBTQIA+ para doar sangue com igualdade.
Solidariedade sem discriminação: a trajetória da comunidade LGBTQIA+ para doar sangue com igualdade. - iStock/sasirin pamai

Uma conquista que precisa de proteção 4r733b

A autorização para que homens gays e bissexuais possam doar sangue no Brasil não é apenas uma correção técnica. Trata-se de uma reparação histórica, que reconhece na solidariedade um direito de todos, independentemente de sua orientação sexual.

Ainda assim, como toda conquista civil, essa vitória não está imune a retrocessos. Para que se consolide plenamente, é preciso mais do que decisões judiciais. São necessárias ações contínuas de formação de profissionais de saúde, campanhas educativas e mecanismos eficazes de denúncia para casos de discriminação.

“Sangue não tem orientação sexual”, resume uma das campanhas lançadas após a decisão do STF. A frase, apesar de curta, sintetiza uma luta longa e complexa. Uma luta que continua. Porque cidadania de verdade se mede, também, pela capacidade de garantir que ninguém fique de fora. Nem mesmo quando a vida depende, literalmente, de um fio de solidariedade.